segunda-feira, 31 de maio de 2010

Sanduíche Comunista

Foi certeiro. Recebi, na véspera do feriado, a visita inesperada do meu avô. Ele nunca viera nos visitar em nossa humilde residência, então, para não fazer feio, comprou no mercado da padaria uns sanduíches de esquentar no microondas. Até então nada demais.
Ficara eu assustado com uma visita dessas. Meu avô era comunista. Era. Infelizmente o coitado faleceu. Mas quando vivo, era sim, comunista de carteirinha. Ia nos palanques, gritava, caía na pauleira com os militares, formava grupo com os estudandes da UniRio e até participou da "Passeata dos Cem Mil". Até então nada demais.
Toca-se a campainha e eu corro para atender, crente que era minha namorada. Olho no olho-mágico e vejo um careca, com uma camisa social amarrotada, todo agitado.
Abri a porta e disse:
-Vô?
Ele esfregou os pés no tapete da entrada, deu um beijo na minha testa, deu um grito chamando os meus pais e colocou as embalagens dos sanduíches em cima da pia da cozinha. Pronto. Puxou um banquinho e ficou lá na cozinha esperando os meus pais. Mostrou as embalagens dos sanduíches e disse para eu comer um. Meus pais chegaram nesse momento e fizeram a mesma cara de espanto que eu fiz. Ele foi franco. Disse sem mais delongas. Abriu o jogo falando que estava sem dinheiro, que devia uma série de empréstimos bancários e que necessitava de ajuda. Me desloquei ao meu quarto e fiquei lá. Até hoje eu não faço a mínima idéia com que fins terminaram essas contas. Lembro do que o meu avô falou naquele dia antes de ir embora:
-"Não seja hipócrita. Não seja falso. Não seja flamenguista"
Lembro como se fosse ontem de ter ouvido essas frases. E nunca mais esqueci.
Hoje em dia, se não me agrada eu não indico para ninguém. Hoje, se tenho que dizer alguma coisa à alguém, digo na hora e ainda cumpro com os meus princípios. Hoje, se torço para alguém, torço para o Botafogo. Tudo graças ao meu avô.
E um dia depois daquela visita inesperada era dois de abril. Dia da Paixão de Cristo. Dia em que não se pode comer carne. E, para meu infortúnio, acordei com fome e me deparei com aqueles sanduíches em cima da pia da cozinha. Pensei. Raciocinei. Levei em conta que era dia da Paixão, dia sagrado, dia que se é lembrado o sacrifício de Jesus por nós. A carne de Jesus em respeito ao invés daquele sanduíche suculento de sabor calabresa.
Para não falar que caí na tentação, eu abri a geladeira para ver se tinha alguma opção vegetariana e que fosse prática. Não tinha. Olhei para um lado, olhei para o outro, e vi que ninguém paraiva a minha humilde residência. Era só eu e aquele sanduíche de calabresa. Pensei. Raciocinei. Peguei o sanduíche e coloquei no microondas. Até então nada demais.
Não fui hipócrita, pois o meu pensamento era claro. Eu penso de uma forma diferente. Todos os dias nós cometemos pecados. Está na Bíblia. Está lá escrito:
"Todo homem está disposto a pecar."
Sim, eu estava disposto. Não era só por um dia em que católicos fiéis ortodoxos lhe cupam de comer carne que eu ia deixar aquele sanduíche apodrecer na pia da cozinha. Se eu me lembro bem, também é pecado desperdiçar comida. E pecado por pecado, preferi comer. Seria hipocrisia minha me passar por "bom samaritano".
Não sou assim, e muito menos em um feriado. Que seja feriado católico ou até mesmo regional. Era feriado e eu estava com fome. Tão importa um dia em sua vida quanto uma porção deles. Então, para os vigários de plantão, eu me desliguei e me lixei. Comi. Comi aquele sanduíche. Cada pedaço como se fosse único (e era!).
Comer aquele sanduíche de calabresa me proporcionou um sabor até hoje incomparável. Nunca na minha vida o comunismo teve um sabor tão gostoso, com direito a ketchup e a cheddar. E comi outro. Eram quatro e no final só restou um. E deixei um de boa vontade. Mas depois, voltei a raciocinar e lembrei de comentar comigo mesmo. Jesus era meu amigo. Eu não precisava deixar me passar por um dia sem carne para provar minha fé Nele. Ele sabe que todo dia eu quito minha dívida divina.
Mas, raciocinando, aquela atitude atrevida foi por aquele comunista de terceira idade ter tido uma idéia de bernadice em fazer uma visita surpresa. Se aquele senhor comunista não tivesse trago aqueles sanduíches, nada de revolucionário passaria em minha cabeça. Aqueles pensamentos desvairados só ocorreram por motivos de um sanduíche. Aquele sanduíche comunista.
Desde daquele dia, a Páscoa nunca mais foi a mesma. Tudo culpa daquele velho comunista.
Que Deus o tenha.

3 comentários:

Brunna Martins disse...

Gostei do escrito.

Se quiser, passa lá no meu também!!!

FullStrikeRO disse...

bela criatividade na escritura @maumauok , abrass

Geovana disse...

Gosto de como escreve! =)